Aula 11: Estética e o Sublime Tecnológico

PRINCÍPIOS ESTÉTICOS

Livros:
SANTAELLA, Lúcia (1994). Estética de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento.
COSTA, Mario (1995). Sublime Tecnológico. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Experimento.
Apresentar os conceitos de estética dos períodos analisados dando ênfase às questões estéticas diante das tecnologias nos Períodos Pré-Industrial, Industrial Mecânico e Industrial Eletro-Eletrônico.

Introdução as Questões Estéticas

A estética é uma disciplina filosófica e científica cujo conteúdo só pode se tornar compreensível quando examinado nas múltiplas relações existentes entre ela e as demais disciplinas filosóficas – Estética, Ética e Lógica. Numa síntese muito generalizada pode-se dizer que as estéticas filosóficas do ocidente passaram pelo menos por três fases diferenciais bem marcadas.

  1. O nascimento das teorias do belo e do fazer criador nas obras de Platão e Aristóteles, que se estenderam, não obstante as particularidades específicas de cada período histórico, pelo mundo latino, Idade Média e Renascença.

 

  1. O deslocamento da ênfase do objeto de beleza para o sujeito que a percebe. Esta visão ocorreu junto com os avanços das ciências físicas e os desafios apresentados pelas filosofias de René Descartes (1596-1650) e Thomas Hobbes (1588-1679). Nessa vertente, dentro do espírito empirista de John Locke (1632-1704), tiveram origem as teorias inglesas do gosto que, aparecendo pela primeira vez, em 1712, nos escritos de Joseph Addison (1672-1719), receberam desenvolvimentos sistemáticos nas obras de Francis Hutcheson (1694-1740) e David Hume (1711-1776). Expostas às questões emergentes da percepção, do desinteresse, da apreciação, do sublime e sensível especialmente aos apelos do “paradoxo do gosto”, levantados por Hume. Kant veio fazer de sua terceira crítica, a da faculdade do juízo ou julgamento, a obra inaugural da idade de ouro da estética, que, estendendo-se pela proeminência do estético dentro do idealismo absoluto de Fridrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854), encontrou seu apogeu na Estética de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1779-1831);
  1. A partir do século XIX, com Arthur Schopenhauer (1780-1860), Friedrich Nietzsche (1844-1900) e, no século XX, com Martin Heidegger (1889-1976) e as estéticas fenomenológicas, o descentramento da secular preocupação com o belo viria produzir a explosão e atomização cada vez mais crescente da estética em versões particularizadas e diferenciais. Destacando-se as figuras exponenciais e influentes de Benedetto Croce (1866-1952) e John Dewey (1859-1952), cujas obras deslocaram a questão do belo para os conceitos de arte “arte como expressão” e de “arte como experiência”. A estética filosófica, propriamente dita, foi cedendo terreno para as incontáveis teorias da arte que foram e continuam sendo desenvolvidas por estudiosos, muitas vezes poetas, como foi o caso dos românticos ingleses e alemães e, depois dos simbolistas franceses, muito especialmente Paul Valéry (1871-1945), situados mais fora do que dentro da filosofia. Só recentemente, a partir dos anos 80 deste século, os debates sobre a pós-modernidade viriam recolocar as questões estéticas de volta ao centro da cena das artes, cultura e filosofia.

 

 

 

Do Belo ao Sublime

Estamos no limiar da era que nos forjou enquanto espécie, com concepções de um universo mecânico decomposto em partições elementares, o qual, foi brilhantemente sintetizado  na  frase  de  Descartes: "PENSO,  LOGO EXISTO". Nossa cultura, até bem pouco tempo, tinha na razão e na matéria sua melhor forma de expressão. Porém, paralelo a esse sistema de pensamento, sempre esteve presente a discussão sobre o que poderia ser a negação dessa racionalidade e dessa materialidade. E isso se expressa com forma no final da modernidade e teve sua melhor síntese nas palavras de Lacan, sobre as idéias de Freud, quando diz: "SOU ONDE NÃO ESTOU". Para melhor compreender o paradigma emergente, podemos olhar para as contribuições de Arthur Kostler em "Jano" e Frijtof Capra em "O Ponto de Mutação". Nossa mente ocidental acostumada a segmentar o mundo para compreendê-lo, deve estar disposta a viver essa nova experiência, com certeza muito mais próxima da forma de pensar oriental.

O primeiro, ao conceituar o que seja "hólon", expressou que toda hierarquia é formada por elementos "autônomos, com governo próprio, dotados com variáveis graus de flexibilidade e liberdade. "Desse modo, unindo-se os conceitos e as palavras “hólon” e “hierarquia,” surge a noção de “holarquia,” que deve ser entendida como "organismos independentes constituintes de um organismo maior que rege as suas ações, integrando-as." Koestler nos mostrou também que o processo de criação em arte, em ciência ou em qualquer ramo de conhecimento envolve vários procedimento interligados agindo simultaneamente, os quais não podem ser traduzidos em termos verbais, pois se deformariam, de modo empobrecedor. Para ele, "o artista, assim como o cientista, está engajado em projetar sua visão da realidade num determinado meio, seja esse meio, a pintura, seja o mármore, ou as palavras, ou as equações matemáticas. Mas, o produto final jamais será uma representação exata da realidade, mesmo que o artista deseje alcançar isso. Em primeiro lugar, ele necessita ater-se às peculiaridades e limitações do meio escolhido para o seu “insight”. Em segundo lugar, sua própria percepção e visão do mundo também possuem peculiaridades e limitações específicas, impostas pelas convenções implícitas de sua época, adicionado ao seu temperamento individual." (Koestler:1978,156)

Já o segundo autor, baseado na visão do primeiro, vislumbrou uma nova percepção da vida determinada por um sistema onde mente, consciência e evolução formam um todo. Em seu primeiro trabalho, "O Tao da Física", ele mostra que existem paralelos entre as antigas tradições místicas orientais e a física produzida no século XX. Em "O Ponto de Mutação", Capra vai um pouco mais longe e integra os enfoques perceptivos ocidentais e orientais, a psicologia e a psicoterapia, como também apresenta-nos uma nova estrutura conceitual para a economia e para a tecnologia, estabelece uma visão holística da saúde e da cura e uma perspectiva ecológica e feminista para o mundo. Capra torna-se o precursor de idéias e teorias espirituais que acarretam profundas mudanças em nossas estruturas sociais e políticas. Para ele, a terminologia “yin” e “yang” é profundamente útil para analisar o desequilíbrio cultural no qual se encontra o século em que vivemos. "Essa teoria considera o mundo em função da inter-relação e interdependência de todos os fenômenos; nessa estrutura, chama-se “sistema” a um todo integrado cujas as propriedades não podem ser reduzidas às de suas partes. Organismos vivos, sociedades e ecossistemas são sistemas. é fascinante perceber que a antiga idéia chinesa do “yin” e do “yang” está relacionada com uma propriedade essencial dos sistemas naturais que só recentemente começou a ser estudada pela ciência ocidental." (Capra,1982:40)

A compreensão das questões estéticas como elos de uma Holarquia do Pensamento Ocidental  é fruto de conceitos que nos remetem à Grécia Antiga e a Idade Média. O Belo e a Imitação, no sentido de cópia em Platão e de representação em Aristóteles, no mundo grego, estão fundadas nos conceitos de razão determinada pela noção de congruência entre medidas e na noção de naturalismo manifestada no entusiasmo e no prazer pela representação exata do modelo idealizado. Já na Idade Média, a percepção orgânica do mundo relacionando a noção de racionalidade à de integralidade dos conceitos se fazia presente e estavam apoiadas em base místicas da ideologia cristã, é óbvio que nesses períodos os princípios não estavam modelados conforme pretendemos observá-los.

Verificamos esses princípios na seguinte citação, originariamente em latim, de Pseudo Dionísio Areopagita, interpretada por Umberto Eco quando discutia a noção de Belo e Bem:

"A beleza consiste nos elementos que compõem [o objeto belo] no que concerne à matéria, mas no esplendor da forma no que concerne à forma; [conseqüentemente] assim como a beleza de um corpo requer que haja uma devida proporção dos membros e que a cor resplandeça neles (...) do mesmo modo a essência universal da beleza exige a recíproca proporção do que equivale [aos membros no corpo], sejam eles partes ou princípios ou qualquer outra coisa na qual resplandeça a luminosidade da forma. (“Super Dionysium de Divinis Nominibus” IV, 72 e 76, “Opera Omnia” XXXVII/1, pp. 182-183 e 185)" (Eco:1989,41)

Esses fundamentos, permeados por percepções espiritualistas do mundo cristão, fazem reviver na Idade Média o conceito grego de “kalokagathia” que unificando “kalos kai agathos” (belo e bom) determinam harmonia ao unir a beleza física, a virtude e a racionalidade, esta última traduzida por proporcionalidade. Realmente são esses princípios do cristianismo, aliados as primeiras características de competitividade do capitalismo mercantilista ocidental e à geometria euclidiana que levaram o homem do século XII, na Europa, a abandonar a relativa estabilidade do sistema feudal por um mundo em revolução. O que certamente não aconteceria na cultura oriental.

Obviamente, a dinâmica desse mundo não nos coloca em posição superior às outras culturas, particularmente à oriental e, cientistas e historiadores estão a discutir se realmente houve ou não uma "Revolução Cultural e Científica" no Ocidente. Porém, nosso objetivo nesse texto não é discutir se esse momento, o qual estamos denominamos de Ciclo Materialista Industrial Ocidental, se caracteriza como um período revolucionário ou não, mas sim, compreendê-lo em sua totalidade como um sistema nos moldes de Kostler e Capra. Para tanto, não devemos arrancá-lo do fluxo normal da história a fim de observá-lo e analisá-lo, pois se assim o fizermos, estaremos rompendo com sua lógica de formação.

Quando observamos a história, notamos que percepções e atitudes dominantes em um determinado momento há muito podem estar sendo observadas e com certeza por muito tempo ainda, além desse instante, sobreviveram. Então, apesar de tomar o ciclo em sua individualidade, porque assim o pensamento holístico o permite, vamos analisá-lo também como um momento íntegro inserido dentro de toda a nossa cultura.

A tragédia é a criação de arte mais característica da democracia ateniense, e em nenhuma outra forma de arte se discernem tão diretas e tão claramente como nela, os conflitos internos da sua estrutura social. Os aspectos externos da sua apresentação às massas eram democráticos, mas o seu conteúdo, as sagas heróicas, com seu ponto de vista trágico-heróico, eram aristocráticas. A princípio a tragédia dirigia-se a um auditório mais numeroso e variado do que o constituído pelas assembléias de pessoas de posição à mesa das quais se recitavam as baladas heróicas ou as epopéias; e, por outro lado, faz a propagação dos padrões humanos do homem generoso e grande, do invulgar homem eminente, corporificando o ideal de kalokagathia. (Hauser:1972,124)

Platão fundamentado no conceito de kalokagathia foi o primeiro a desenvolver uma teoria das artes inserida no contexto mais amplo de uma filosofia do belo que reinou soberana por séculos, continuando até hoje a inspirar muitos autores. Há dois conceitos básicos em sua teoria: o conceito de mímese, de um lado, e o do entusiasmo criador, de outro.

Quatro temas gerais podem ser extraídos dos escritos platônicos sobre as artes:

1. a idéia geral de arte, téchne, cujo princípio está na medida;
2. os objetivos e deficiências do conceito de mimese;
3. o conceito de inspiração, entusiasmo, loucura ou obsessão, como condições necessárias à criação;
4. o conceito de loucura erótica e sua conexão com a visão do belo. (Santaella:1994,27)

Para Aristóteles a arte é, antes de tudo, resultado de uma habilidade especial para fazer, não o fazer maquinal, repetitivo, mas aquele capaz de transfigurar os materiais a ponto de alcançar um poder revelatório. A arte será tanto mais bem realizada quanto mais a perfeição de sua forma, na segurança do método, for capaz de atingir a unidade satisfatória de um todo eficaz e auto-sustentado. O belo, portanto, é fruto ou resultado do domínio que o artista tem da téchne, de quão habilmente ele é capaz de utilizar os meios da composição, tendo em vista a simetria, harmonia e completude.

O conceito básico no entendimento aristotélico da arte é também o de mímese, mas entendida dentro de pressupostos e finalidades bastante diversas das platônicas. Segundo Eva Schaper, a mímese, para Aristóteles, deriva de uma necessária relação de adequação que deve haver entre arte e vida, arte e natureza. O que a arte imita, assim, é a atividade produtiva da natureza. Aqui, a mímese não é mais imitação como cópia de algo prévio, não é a produção da semelhança, num ato de fidelidade a um original qualquer que seja, mas é criação ou poiesis. A imitação poética visa à criação de algo novo, por isso mesmo, só a arte pode ser mimética, o que significa deslocar o conceito de mímese do sentido de cópia para o de representação e transformação.

A maior diferença entre Platão e Aristóteles reside nas conseqüências que cada um deles extraiu de sua filosofia para a apreciação e avaliação da arte. Se, para Platão, a arte pode ser fonte de ilusão e levar ao engano por alimentar as paixões, para Aristóteles, a arte é valiosa porque reparadora das deficiências da natureza, especialmente as humanas, trazendo com isso uma contribuição moral inestimável. Rejeitando o idealismo metafísico de seu antecessor, Aristóteles depreciou o papel que a beleza e o amor erótico desempenham na discussão da arte.

Ao homem medieval coube uma percepção dos fenômenos universais atrelado à visão mística da filosofia cristã orientada por "leis naturais" estabelecidas por um único "Deus". Os orientais nunca tiveram essa missão obsessiva de seguir um conjunto de idéias estabelecidas por algo superior a eles. Segundo Umberto Eco os medievais apossaram-se de vários temas, problemas e soluções do mundo clássico, usando-os no contexto de uma sensibilidade nova e diferente. Desse modo, eles só estavam dispostos a receber a beleza na sua aparição como realidade puramente inteligível, como harmonia moral ou esplendor metafísico, mas, ao mesmo tempo, não conseguiam descartar totalmente a beleza sensível simplesmente porque um valor mais alto, especialmente no nível teórico, era conferido à beleza do espírito. De fato a tensão entre o teórico e o prático, que se expressou no pensamento medieval, gerou uma tentativa de conciliação desses dois lados irreprimíveis da beleza, na concepção que eles desenvolveram da experiência estética. São Tomás de Aquino não formulou uma teoria estética específica e homogênea num corpo explícito de escritos, nos diz Eco, mas há um papel fundamental desempenhado pela beleza no seu pensamento, como restauradora de uma ordem e equilíbrio que emergem através da síntese de eventos causais e contradições empíricas.

Ele entendia a beleza como uma propriedade transcendental e constante do ser. Ser é aquilo que pode ser visto como belo. Todos os seres contêm as condições constantes da beleza, uma vez que o universo, como obra de seu criador, é necessariamente belo, uma enorme sinfonia de beleza.

 Para Samuel Y. Edgerton, em "The Heritage of Giotto's Geometry", três são as condições que a Europa, a partir do século XII, dispõe para realizar a gênese da moderna ciência. A primeira, de caráter religioso, traz consigo esse conceito ético de "lei natural", no qual, o modelo é fixado "a priori" por padrões morais estabelecidos por um "Deus". A segunda, de caráter político, traduz-se na rivalidade entre os estados-cidades e sua economia baseada em um Sistema Capitalista Mercantilista Burguês. A terceira, de caráter lógico, trata-se do Sistema Geométrico Euclidiano, o qual permite tanto ao artista quanto ao cientista construir seus modelos de representação do mundo, através de uma ordem "natural", finita, mecânica, suscetível de demonstração através de deduções lógicas matemáticas. (Edgerton: 1991,12).

Esse período é fortemente marcado pelos valores de racionalidade e materialidade, os registros aqui deixados consagram o caráter histórico da nossa civilização e os valores materiais apoiados na racionalidade passam a ser o sustentáculo desse ciclo que, apesar de unir duas vertentes de pensamento, a grega e a medieval, também possui características individuais enquanto momento histórico. Esses dois princípios formadores desse ciclo permanecem vivos até os dias de hoje e de maneira sintética modelam o homem da modernidade e tudo que passaremos a estudar.

No capítulo "Geometria, Arte Renascentista e a Cultura Ocidental", de Edgerton, encontramos diretrizes que nos levam a tentar compreender esse ciclo em sua totalidade. No século XVII, os filósofos naturalistas, como Kepler, Galileu, Descartes, Francis Bacon e Newton tinham que a geometria perspectiva  linear estabelecia conceitos óticos similares ao processo fisiológico da percepção visual humana. Dessa forma, rompia-se com o princípio medieval e até renascentista de uma "Geometria Divina" que nos permitia representar através da arte a essência da estrutura da realidade e assim, ao visualizar as obras de arte, estaríamos revivendo o momento divino da Criação do Universo.

Um método, que nos permite representar através de escalas e traduzir em medidas os objetos e os homens, não só representa nossa percepção do presente, mas se torna a verdadeira ferramenta para reproduzir o futuro, simulando-o. A ciência moderna deve muito à geometria estruturada por Euclides no século III, a tal ponto que, Albert Einstein, em defesa de sua teoria da relatividade baseada em uma geometria não-euclidiana, chamou a primeira de a segunda maior realização de todos os tempos. (Edgerton: 1991,12)

A geometria linear perspectiva produz perfeitas figuras e imobiliza as máquinas com seus procedimentos de representação, mas somente a álgebra formula e explica os fundamentos mecânicos dessa mesma máquina, afirma o cientista e historiador Michael Maloney e de fato, a álgebra e a matemática são igualmente importantes para a ciência, para a arte e para a crença que o universo e todas as coisas operam mecanicamente.

Isso nos leva a uma das características mais marcantes desse ciclo, qual seja: toda a produção intelectual e cultural do momento industrial possui como suporte a matéria e o homem-produtor ocidental, considerado como um ser explorador, até porque o sistema capitalista e mercantilista burguês assim o deseja, está a imprimir suas marcas individuais na matéria. De fato, perceber a matéria em toda a sua extensão faz do microscópio e do telescópio as duas ferramentas mais importantes produzidas no renascimento, e que unidas aos estudos de ótica e aos conceitos de espaço uniforme baseado nos princípios euclidiano, nos darão os conhecimentos sobre mecânica celeste e tudo que daí possa ser extraído, até mesmo a teoria da relatividade de Albert Einstein que reformula grande parte desse conhecimento.

A racionalidade cartesiana não pode ser deixada de lado na percepção desse ciclo. A luta entre as questões da razão e da alma se torna metafísica e se define nos signos criados nesse período; os aspectos sensíveis de nossa percepção são totalmente negados, é na base dessa filosofia que se tem que "a infância e a memória histórica, são fontes de erros, enganos e ilusão" (Matos: 1990,287) e é somente através da razão que o homem se torna homem, pois na memória ele permanece criança.

O Renascimento viria trazer o desenvolvimento da autonomia do belo frente à esfera moral. A arte, até então genericamente concebida, iria codificar-se em subdivisões específicas, passando a mímese a ser entendida como imitação da beleza natural. O advento do capitalismo mercantilista e o antropocentrismo nascente exigiram o reconhecimento “das qualidades especificamente humanas do artista, capaz de produzir objetos belos”. O valor dos objetos artísticos seria, daí para frente, duplo: “espiritual e material, quer dizer, mercantil”.

Num segundo momento, "a dialética do iluminismo, ou melhor, a dialética da razão é a reviravolta segundo a qual, quanto mais a razão ganha em precisão, exatidão e domínio sobre o objeto, mais ela se curva sobre si mesma" e sobre a dúvida. "O sujeito racional é uma entidade lógica", que se afirma e é capaz de utilizar o mundo ao seu redor para seus próprios intentos. No entanto, cada vez mais, torna-se escravo do sujeito empírico que tem consciência através da dúvida e "permitirá a separação radical entre a consciência intelectual e os conteúdos sensíveis da experiência", que são as fontes das incertezas.(Matos: 1990,289)

Essa dúvida nascida no seio da razão cartesiana irá dar condições para uma nova estruturação de nossas percepções. Os dados sensíveis serão catalogados sob a "categoria da extensão", que é tal como um corpo na concepção cartesiana, que é a essência das coisas materiais, atada a uma concepção dinâmica que "explica os seres não como máquinas que se movem, mas como forças vivas, ... a partir da noção de matéria como essencialmente ativa".(Leibnitz:1990,99)

Essa dinâmica reflete a energia presente nas coisas materiais e nos remete à "materialidade" (Matos, 1990,289) como algo que se posiciona depois da matéria, algo “além-material”. O princípio da “mônada” (Leibniz: 1990,99) introduzida pelo matemático e filósofo G. W. Leibnitz surge como uma concepção que nos possibilita ver o despertar histórico e a aceitação dos dados sensíveis como fatos que não devem ser desprezados. Vivemos entre o sono e a vigília e temos à mente algo uno, indivisível e contínuo.

A partir dessas novas experiências estamos prontos a observar o mundo subatômico através da teoria da relatividade, onde a energia da luz e o conceito de entropia da termodinâmica são fundamentais em nossas observações. Passamos a compreender o mundo através de um novo paradigma de percepção, que pode ser explicado, e o foi, por autores como Kostler e Capra, com traços de similaridade com a filosofia oriental, com o” yang” e o “yin” e com o Zen, na filosofia taoísta.

O Ciclo Materialista Industrial Ocidental, se olhado pelo lado dos meios de produção, inicia-se com o pré-capitalismo e a consciência de que a sociedade baseada no sistema feudalista havia terminado prolongando-se até os nossos dias. Tem à sua frente um homem-produtor que, nos períodos pré-industrial e industrial mecânico, projeta seu corpo no tempo e no espaço e, no período industrial eletro-eletrônico, projeta seu sistema nervoso central além do tempo e do espaço. (McLuhan: 1988,17) Verificamos que as mudanças perceptivas nesses períodos estão marcadas pela alteração da velocidade. Do começo desse ciclo ao auge da industrialização aumenta-se a velocidade de produção no mundo, inventam-se as máquinas. Em seguida, somos levados ao ápice da rapidez de processamento e, através da energia elétrica, chegamos à velocidade da luz.

"A luz elétrica é informação pura", afirma McLuhan, e, dizendo que "o meio é a mensagem", nos introduz na era do homem que não mais produz sozinho sobre a matéria, explorando-a, mas necessita viver e interagir num ecossistema onde sua co-participação é fundamental. Para o autor, a potencialidade dos meios, que determina o que se quer transmitir, está no conteúdo desse meio. Hoje totalmente instalada na informação transmitida através da energia elétrica, não possui um meio que a suporte e tem seu potencial expressivo colocado no conceito de “materialidade”, que não se opõe ao de matéria; mas vai além desse, instalando-se no que denominamos de “além-material”. (Laurentiz: 1991,102)

Esses conceitos não podem ser totalmente compreendidos se negligenciarmos, igualmente a McLuhan, que os meios de comunicação são além de tudo meios de produção nos quais se realiza o trabalho prático, obviamente determinado pela infra-estrutura, porém, com características próprias enquanto meios de produção de linguagem e de cultura instaladas na superestrutura, de acordo com o dialético pensamento marxista. Os meios de reprodução transformam os fatos do mundo em novos fatos e, através de nossa percepção, criam e recriam esse mundo em linguagens de comunicação, embutidas em um todo socio-econômico-cultural que as determinam.

Não entraremos em detalhes nessa discussão, em primeiro lugar porque não é objetivo desse texto, em segundo, porque Lúcia Santaella e Robert Henry Srour já o fizeram com grande maestria, trazendo à nossa compreensão toda a complexidade do mundo das produções culturais em suas relações, não menos complexas, com as questões políticas e econômicas em sociedades historicamente compreendidas. A nós, basta apenas destacar dois pontos vitais para o entendimento e percepção desses conceitos que compõem as verdadeiras contradições dialéticas intrínsecas aos meios de comunicação.

E são eles:

1. "o real não é transparente e dele não se faz uma leitura imediata; a abstração não espelha o real, porém dele se apropria cognitivamente, isto é, modifica de modo particular o objeto apropriado; a produção cognitiva não é por si mesma uma prática material, ao mesmo título que a prática produtiva econômica que transforma a natureza, pois o pensamento não trabalha diretamente com o concreto, mas com representações mentais desse mesmo concreto", como afirmou Srour, e;

2. "os fenômenos reais, concretos, sejam eles culturais, políticos ou econômicos são sínteses de múltiplas determinações". (Santaella: 1990,35)

Finalizando, retomemos o conceito de ”além-material”, que é fruto da luta dialética entre o mundo da razão e o mundo do sensível, do qual emergiu esse insight. Para a compreensão desse conceito de ”além-material” é necessário destacar que hoje constatamos que a filosofia que originou nosso modo de pensar, o humanismo, encontra a espécie da qual herdou o nome, em uma profunda crise de valores, crise esta que nos impossibilita de planejar a vida. Temos consciência da ameaça que somos a nós mesmos, à nossa espécie. Possuímos as armas que nos permitem extingui-la do planeta. E assim, psicologicamente abalados por esse fato, estamos diante de mudanças em nossos valores de percepção, ou seja, em nosso paradigma de percepção.

Após a Segunda Grande Guerra Mundial, o homem-produtor-cientista leva ao extremo o seu conhecimento material o que nos trás à mente a insensibilidade que possuímos em preservar o nosso ecossistema e a nossa vida. Precisamos rever nossos paradigmas de maneira consciente e inconsciente, ou seja, necessitamos entrar em sintonia com a energia vital, para não concretizarmos essa autodestruição. Isso parece vir da visão holística de mundo, assim devemos transformar esse nosso planeta em um “sistema holárquico” onde haja total equilíbrio entre os elementos.

No primeiro instante privilegiamos as formas materiais e mecânicas do mundo. Em seguida, na tentativa de sistematização dessas percepções, como um dado único do pensamento, encontramo-nos divididos diante de uma infinidade de estruturas lógicas. De fato, esse segundo estágio de organização do conhecimento, abre um leque de estruturas que não se adaptam mais às formas absolutas, estáticas e uniformes de encarar os fenômenos, assim somos obrigados a substituí-las por valores dialéticos e dinâmicos.

A partir daí, na ânsia de encontrar uma estrutura que possibilite elaborar e organizar todas essas estruturas materiais que descobrimos, nos deparamos com energia e com o “além-material”. Intrinsecamente ligado à matéria e ao seu estado de contínuo movimento, a energia da luz somada à relatividade de nossas observações nos traz à mente um mundo holístico em sua forma unívoca e integral de olhar para os fatos, hierarquicamente subordinados a todos maiores que os determinam. Similar ao Zen, na filosofia oriental, encontramos no vazio a totalidade de nosso ser e na estrutura em ausência tudo aquilo que gostaríamos de saber sobre a estrutura das estruturas. Os meios de comunicação mais recentes passam a ter como suporte as energias elétricas, nuclear, solar, psíquica e uma infinidade delas sintetizadas na energia vital do planeta que está situada “além da matéria”.

Isso posto, a partir de agora olharemos através da visão de diversos autores as questões sobre estética desse momento, isto é, o ciclo materialista industrial ocidental que pode ser dividido em três momentos: os períodos pré-industrial, industrial mecânico e industrial eletro-eletrônico. Os três, com características próprias enquanto momento no qual se definem, não podem deixar de serem observados imersos em valores racionais e materiais para em seguida, ao descobrirem a existência de suas negações, ficarem estarrecidos. Finalmente,  produzindo  uma  síntese  de  momentos  anteriores  a  eles  dão  um  salto,  indo  apoiar-se  na  “além-materialidade”.

Devemos, antes disso, ressaltar mais uma vez que estamos observando os períodos pertinentes ao período da industrialização no qual despontaram os valores materiais de nossa civilização. O período industrial deve ser compreendido além desse mero ciclo destacado. Ele desponta integralmente calcado na razão e na matéria unidos aos princípios euclidianos, ao capitalismo mercantilista burguês e à noção de que tudo é regido por "Deus". Isso nos faz perceber três momentos, como já citamos, que existem somente para efeito analítico e que não são independentes entre si e estão subordinados hierarquicamente a esse período maior.

A história não é constituída de períodos, eras ou estilos fragmentados isolados em si. Quando ocorrem mudanças de comportamento e percepção, e outras qualidades são observadas, as anteriores não deixam de existir e nem se modificam tão bruscamente. Assim, observado em três estágios, o período industrial caracterizou-se pela passagem de um momento místico e estável para outro materialista, no qual, a indústria é definitivamente implantada enquanto sistema produtivo apoiado no sistema capitalista burguês, para finalmente questionar esses mesmos valores materiais em busca de novas crenças e novos padrões culturais; agora não mais com características regionalistas determinadas territorialmente. Hoje, a espécie humana está exposta a um conhecimento universal; passa a se referenciar em valores universalmente aceitos, provocando uma relativa unidade entre quase todos os universos perceptivos do planeta.

As hipóteses de Hegel e Kant

3.1. Kant

Kant incorporou ao seu pensamento muitos lugares-comuns de sua época em relação a filosofia e em particular em relação a estética. Questões como o belo e o sublime, levantadas em “Crítica do Julgamento”, desse autor, sintetiza muito do que se vem pensando desde Platão e Aristóteles, passando por santo Agostinho, Longino, Descartes, Hume e Leibniz. Todos os conceitos são contemplados dentro da complexidade do pensamento de Kant que, quando reflete sobre as questões analíticas do belo e do sublime faz com que os conceitos racionalistas fundados na razão e propondo uma concepção do belo subordinado ao verdadeiro, cuja fonte última, estava na natureza humana e os ensaios ingleses fundamentado nas escolas iluministas, no século XVIII, situados dentro do espírito do empiriscismo, transformarem-se em “balbucios de crianças aprendendo a falar a língua materna” como afirma Lúcia Santaella.

Para Kant todas as questões de estética de seu tempo estavam divididas entre o racionalismo e o empirismo. “Embora Descartes não tenha escrito quase nada sobre estética, por mais de um século seu método e metafísica influenciaram profundamente as concepções sobre a natureza da arte. Assumia-se, nessas concepções, que a natureza e a razão são idênticas, de modo que as regras que governam as ciências também governam as artes. Aristóteles era muitas vezes considerado como o grande descobridor das regras da crítica, do mesmo modo que Newton iria, depois, descobrir as leis da Física. Não se negava, com isso, que a arte fosse expressiva, uma vez que o modelo cartesiano previa a descrição minuciosa das mudanças até mesmo fisiológicas da emoção. Sendo, no entanto, a verdade da representação e a perfeição os fins últimos da arte, o artista deveria passar por um treinamento das paixões que não diferia muito do treinamento do cientista.”

Em “Crítica do Juízo Estético”, Kant afirma que “não pode haver nenhuma regra de gosto objetiva que determine por conceitos o que é Belo. Pois todo juízo desta fonte é estético; isto é; o sentimento do sujeito e não um conceito de um objeto é seu fundamento-de-determinação. Procurar um princípio do gosto que fornecesse o critério universal do Belo por conceitos determinados é um empenho inútil, porque o que é procurado é impossível e em si mesmo contraditório”.

Primeiro Momento do Juízo do Gosto é considerado do ponto de vista da qualidade. Após uma análise muito exata da satisfação que determina o juízo do gosto (que é desinteressada), Kant compara as formas de satisfação que são a satisfação (estética) do gosto, do agradável e do bem. A satisfação, que determina o juízo do gosto, é sem nenhum interesse, é contemplação. A satisfação com o agradável é aquilo que apraz aos sentidos na sensação, é vinculada ao interesse. A satisfação com o Bem é vinculada com interesse. Infere, depois de as confrontar, uma definição do Belo deduzida do primeiro momento: “O gosto é a faculdade de julgar um objeto ou um modo de representação pela satisfação ou desprazer de forma inteiramente desinteressada. Designa-se por Belo o objeto dessa satisfação”.

Segundo Momento do Juízo do Gosto é considerado do ponto de vista da quantidade. Kant encara sob o ângulo da segunda categoria o gosto e a Beleza, a fim de mostrar que esta última é representada “sem conceito” como “objeto de uma satisfação necessária” e que o gosto possui um sentimento de prazer, é um juízo, só faltando saber-se qual precede o outro. Definição do Belo deduzida do segundo momento; “É Belo aquilo que agrada universalmente sem conceito”.

Terceiro Momento do Juízo do Gosto é examinado do ponto de vista da relação. Kant mostra aqui como o juízo do gosto assenta em princípios apriori, e que ele é tão independente da atração, da emoção, como do conceito de perfeição; propõe em princípio o ideal de Beleza “pelo acordo mais perfeito possível de todos os tempos e de todos os povos” acerca das “produções exemplares”. Definição de Beleza tirada deste terceiro momento: “A Beleza é a forma da finalidade de um objeto enquanto percebida sem representação de fim (finalidade de um objeto enquanto percebida sem representação de fim (finalidade sem fim))”.

Quarta Momento do Juízo do Gosto segundo a modalidade da satisfação dada por um objeto. “A necessidade do contentamento universal concebida num juízo do gosto é uma necessidade subjetiva, na suposição de um senso comum”. A última definição é a seguinte: “Belo é aquilo que, sem conceito, é concebido como objeto de uma satisfação necessária”.

Da Arte em geral na estética de Kant, o sentimento estético reside na harmonia do entendimento e da imaginação, graças ao jogo livre desta última. A arte se distingue da natureza, como fazer do agir ou atuar em geral, e o produto, ou a conseqüência da primeira, como obra (opus), da segunda como efeito. Arte como habilidade do homem distingue-se também da ciência (o poder, do saber), como faculdade prática da teórica, como técnica da teoria.

Distingue-se arte de artesanato; a primeira chama-se livre, a outra pode chamar-se também de arte remunerada. A arte é ocupação agradável, como jogo, que pudesse cumprir sua finalidade (ter êxito); a segunda pode ser imposta como trabalho, isto é, ocupação que por si mesma é desagradável (penosa), e somente por seu efeito (de remuneração) é atraente. Não há uma ciência do Belo, mas somente crítica, nem bela ciência, mas somente bela-arte. Se a arte, adequada ao conhecimento de um objeto possível, executa, meramente para torná-lo efetivo, as ações requeridas para isso, ela é mecânica; se, porém, tem o sentimento de prazer como propósito imediato, chama-se arte estética.

Bela arte é uma arte, na medida em que, ao mesmo tempo, parece ser natureza. A beleza natural é uma “bela” coisa; a beleza artística é a “bela representação” de uma coisa. Belo é aquilo que apraz no mero julgamento (não na sensação-de-sentidos, nem por um conceito). Bela-Arte é arte do gênio. Gênio é o talento (dom natural) que dá à arte a regra. Deve reunir: originalidade e exemplaridade. Para a bela-arte, pois seriam requisitos imaginação, entendimento, espírito e gosto. O gosto é meramente uma faculdade-de-julgamento, não uma faculdade produtiva.

Há dois modos (modus), em geral (modus aestheticus), o outro método (modus lógicus), que se distingue um do outro nisto: que o primeiro não tem outra justa medida do que o sentimento da unidade de exposição, mas o outro segue nisso princípios determinados; para a bela-arte só vale o primeiro.

    1. Hegel

 

Hegel é o último grande filósofo de tradição metafísica ocidental inaugurada pelo platonismo, no qual a definição grega do homem diz que este é o animal racional, onde conceitualmente se impõe a dicotomia entre corpo e alma. O platonismo, desta forma, propõe que a alma é superior por ser imortal, espiritual e eterna, enquanto o corpo é inferior por ser perecível e passageiro.

Por outro lado, o pensamento pós-hegeliano denuncia a crise da metafísica quando começa a pensar o mundo sensível dentro de outras perspectivas, onde este plano do sensível deixa de ser considerado uma realidade inferior à do plano espiritual.

Hegel vai propor uma estética fenomenológica, enquanto ciência do belo e por isso filosófica, que tem o objeto artístico como manifestação do belo, e este belo como fruto do espírito que conduz ou contém em si a verdade. A revelação desta verdade metafísica é, para Hegel, o fim último da arte, o qual se dá através da “representação concreta e figurada daquilo que se agitas na alma humana”.

Todo o pensamento de Hegel sobre o belo artístico conduz à justificação e fundamentação da arte romântica que, segundo ele, nasceu da ruptura da unidade entre a realidade e a idéia, e passou a estar empenhada em expressar, de forma concreta, o universal, o espírito. Acrescenta, neste pensamento, que a arte romântica ultrapassou o ideal clássico de união entre o sensível e o espiritual, pois a idéia se liberou numa direção anárquica, compreendendo que na imaginação reinam o arbitrário e a anarquia.

Segundo Hegel, “o belo artístico é superior ao belo natural porque é produto do espírito, e (...) tudo que procede do espírito é mais elevado do que aquilo que existe na natureza, (...) pois o que participa do espírito participa da verdade, (...) unicamente o espiritual é verdadeiro. (...) o belo natural é, pois, um reflexo do espírito, e só é belo enquanto participa do espírito”. Assim, ele define o espírito como entidade superior e agente de todas as manifestações humanas, onde a arte é objeto de representação das idéias nascidas do espírito, e ela é, portanto, aparência, pois para não permanecer como abstração deve aparecer, e “em sua própria aparência a arte nos deixa entrever algo que supera a aparência: o pensamento.

A arte, enquanto representação apresenta a relação entre o conteúdo e o seu lado material. Sob a forma está escondido o ilusório, a imaginação, a intuição, as sensações, o subjetivo, que através de signos é capaz de demonstrar seu conteúdo. Neste momento “a obra de arte solicita nosso juízo: submetemos seu conteúdo e exatidão de sua representação a um exame reflexivo”. Ainda, para o filósofo, “o que a obra de arte provoca em nós é, por sua vez, um gozo direto, um juízo que leva tanto ao conteúdo como aos meios de expressão  e ao grau de adequação da expressão com conteúdo”. Assim a qualidade da arte dependendo grau de fusão, de união, que existe entre a idéia e a forma, enquanto que realidade concreta, onde “o defeito da obra de arte não é sempre resultado da carência de habilidade do artista, senão que da insuficiência da forma se desprende a insuficiência do conteúdo”.

Para Hegel “a beleza representa a unidade do conteúdo e do modo de ser deste conteúdo”, manifestando-se em três classes de relações: arte simbólica, arte clássica e arte romântica. Estas definições vão colocar pressupostos que permitiram, mais tarde, que Peirce definisse os conceitos de ícone, índice e símbolo, na ciência semiótica, ou seja, a ciência dos signos. No entendimento de Hegel, a arte simbólica é essencialmente aquela produzida no oriente, a qual representa o sublime, e a forma em que se apresenta lhe é exterior, inadequada, arbitrária. Na arte clássica o conteúdo recebeu uma forma que lhe convém, da idéia e sua manifestação exterior, onde, por exemplo, o deus grego representa a unidade visível da natureza humana e da divina, e aparece como a única e autêntica realização desta unidade. Na arte romântica há a ruptura da unidade entre o conteúdo e a forma, pois a idéia se liberou, e a subjetividade está na sua base, é uma arte que serve  para expressar tudo que está em relação com os sentidos, com a alma.

Hegel parte do belo artístico como objeto da ciência (estética), para então compreender o particular, e chega a classificar as “artes particulares” da seguinte forma: a arte simbólica busca o ideal, e está expressa na arquitetura; a arte clássica alcançou o ideal e manifesta-se na escultura; enquanto a arte romântica ultrapassou o ideal através da pintura, música e poesia.

Este breve recorte das “Lições de Estética” permite que tracemos um paralelo com o pensamento de Danto, o qual parte de que “o objeto estético não é uma entidade platônica fixada eternamente como um deleite para além do tempo, do espaço e da história”, contrapondo-se a Hegel. Danto propõem que a apreciação estética deve partir da interpretação capaz de determinar a relação entre o trabalho de arte e sua parte material, pois a qualidade material da obra contém informação histórica, definindo o tempo em que foi tecnicamente possível a realização de tal obra.

Do seu lado, Hegel se vincula intimamente à política, de tal forma que ao falar de política está falando de filosofia e vice-versa. “O projeto fundamental de Hegel”, assinala Bourgeois, “é um projeto do homem total” e “deve realizar-se em todas as dimensões da vida humana, e portanto também na dimensão estritamente política; não se trata, inclusive, da realização desse projeto senão na medida em que essas diversas dimensões perdem sua independência, umas em relação às outras (...) e são, por conseguinte, integradas em uma totalidade orgânica da existência.” O que interessa para Hegel é “a vida enquanto ela é contradição entre a vida substancial e a subjetividade do vivente guiada e conduzida pela primeira, a vida do mundo”.

Dois conceitos de Hegel vão fundamentar nossa compreensão. Primeiro o de “Zeitgeist” que pode ser traduzido por “Espírito da Época” e está expresso em seu texto “Introdução à História da Filosofia”, no qual ele trata de forma similar o conjunto de idéias dadas na razão estruturada por um conceito lógico, a filosofia, e a história desta. Nos mostra que as relações mediadas “entre história política, formas de Estado, arte e religião e filosofia, não se devem ao fato de serem aquelas a causa da filosofia, como esta, por seu turno, não é a causa daquelas; tanto uma como as outra têm conjuntamente a mesma raiz comum: o espírito do tempo. É sempre um determinado modo de ser, um determinado caráter, que invade todas as diversas partes e se manifesta tanto nas formas políticas como nas demais formas culturais, fundindo num todo as várias partes.”

O segundo conceito que surge como “Espírito da Época” de Hegel é a dialética. Ele apresentou-se como o pensador que procurou reconciliar a filosofia com a realidade, estabelecendo acordo entre as duas. Esse acordo pode ser considerado “como uma prova, ao menos extrínseca, da verdade de uma filosofia; assim como se pode considerar que o fim supremo da filosofia seja produzir, mediante a consciência desse acordo, a conciliação entre a razão consciente de si mesma, a razão tal qual é imediatamente e a realidade”.

Para ele a mais alta dialética do conceito “é produzir e conceber a determinação, não como oposição e limite simplesmente, mas compreender e produzir por si mesma o conteúdo e o resultado positivos, na medida em que, mediante esse processo, unicamente ela é desenvolvimento e progresso imanente. Essa dialética não é (...) senão a alma própria do conteúdo, que faz brotar, organizadamente, seus ramos e seus frutos.” Nesse sentido, a legitimidade de um sistema filosófico só se instaura como tal desde que, nesse sistema, inclua-se o negativo e o positivo do objeto, e na medida em que tal sistema reproduza o processo pelo qual o objeto se torna falso para, em seguida, voltar à verdade. Uma vez que a dialética é um processo desse tipo, ela pode ser considerada um autêntico método filosófico.”

Esses mesmos conceitos serão profundamente utilizados por Marx e Engels. A linguagem de apreciação artística e as questões de filosofia estética são relativas a cada cultura e isso nos leva a uma postura coerente com o materialismo histórico, de forma que podemos pensar na questão da obra e sua reprodutibilidade técnica, no período industrial, destacado por Benjamin. A obra, mesmo reduzida à sua parte material, nos dias atuais, por outro lado não permitiu que o conceito fosse separado dela, e aqui podemos discutir a questão da arte conceitual que retorna à razão, ou a imaginação, como fruto do espírito. Desta forma, qualquer que seja a postura adotada para produção da arte, ela atualmente não obedece apenas à intuição, o que levaria a uma postura ingênua com relação às formulações que a Estética já alcançou. Sendo assim, as artes reproduzidas nestes dias certamente podem buscar transparecer conceitos através de meios próprios e coerentes há este tempo.

Podemos, então, perguntar que meios são coerentes ao tempo atual, para uma definição da técnica. Isto parece mais simples do que resolver a questão conceitual ou para Hegel seria a busca da verdade enquanto produto do espírito ou, de forma mais ampla, o espírito da época. Mas como definir esta época quando, por exemplo, as teorias políticas sociais estão em crise, e é impossível pensar em unicidade de valores, pois vivemos todos os “tempos históricos” num mesmo instante.    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As hipóteses de Benjamin - Da Arte Artesanal e Arte Reproduzida

Benjamin tinha seu ensaio A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução na conta de primeira grande teoria materialista da arte. O ponto central desse estudo encontra-se na análise das causas e conseqüências da destruição da “aura” que envolve as obras de arte, enquanto objetos individualizados e únicos. Com o progresso das técnicas de reprodução, sobretudo do cinema, a aura, dissolvendo-se nas várias reproduções do original, destituiria a obra de arte de seu status de raridade.

Para Benjamin, a partir do momento em que a obra fica excluída da atmosfera aristocrática e religiosa, que fazem dela uma coisa para poucos e um objeto de culto, a dissolução da aura atinge dimensões sociais. Essas dimensões seriam resultantes da estreita relação existente entre as transformações técnicas da sociedade e as modificações da percepção estética. A perda da aura e as conseqüências sociais resultantes desse fato são particularmente sensíveis no cinema, no qual a reprodução de uma obra de arte carrega consigo a possibilidade de uma radical mudança qualitativa na relação das massas com a arte. Embora o cinema - diz Benjamin - exija o uso de toda a personalidade viva do homem, este priva-se de sua aura. Se, no teatro, a aura de MacBeth, por exemplo, liga-se indissoluvelmente à aura do ator que o representa, tal como essa aura é sentida pelo público, o mesmo não acontece no cinema, no qual a aura dos intérpretes desaparece com a substituição do público pelo aparelho. Na medida em que o ator se torna acessório da cena, não é raro que os próprios acessórios desempenhem o papel de atores.

Benjamin considera ainda que a natureza vista pelos olhos difere da natureza vista pela câmara, e esta, ao substituir o espaço onde o homem age conscientemente por outro onde sua ação é inconsciente, possibilita a experiência do inconsciente visual, do mesmo modo que a prática psicanalítica possibilita a experiência do inconsciente instintivo. Exibindo, assim, a reciprocidade de ação entre a matéria e o homem, o cinema seria de grande valia para um pensamento materialista. Adaptado adequadamente ao proletariado que se prepararia para tomar o poder, o cinema tornar-se-ia, em conseqüência, portador de uma extraordinária esperança histórica.

Em suma, a análise de Benjamin mostra que as técnicas de reprodução das obras de arte, provocando a queda da aura, promovem a liquidação das obras de arte, promovem a liquidação do elemento tradicional da herança cultural; mas por outro lado, esse processo contém um germe positivo, na medida em que possibilita outro relacionamento das massas com a arte, dotando-as de um instrumento eficaz de renovação das estruturas sociais. Trata-se de uma postura otimista, que foi objeto de reflexão crítica por parte de Adorno. (Benjamin: 1983, XI)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

5. As hipóteses de Duchamp - O Castelo da Pureza
Octávio Paz, através da análise da obra de Marcel Duchamp, faz uma importante reflexão sobre a modernidade. Afirma que a obra de Marcel Duchamp é a própria negação da moderna noção de obra de arte e ressalta a importância da atitude do artista de crítico da modernidade. Para isso inicia seu ensaio traçando um paralelo entre Marcel Duchamp e Picasso onde discorre sobre as principais características destes dois artistas, que segundo o autor, definem a nossa época.

Picasso com suas metamorfoses e fecundidade inesgotável representa a modernidade; “todas as mutações que nossa época sofreu”; em suas obras “o espírito moderno se torna visível”. As obras de Duchamp são vistas pelo autor como uma só obra, “um conjunto de trabalhos unidos como as frases de um discurso”; que se resumem em um pequeno número de quadros e objetos, um longo período de inatividade e alguns gestos que refletem suas negações, explorações e crítica à arte moderna.

Segue então algumas frases retiradas do ensaio “O Castelo da Pureza” que nos dão uma visão das colocações do autor sobre importantes aspectos da obra de Marcel Duchamp divididos nos seguintes itens:

Pintura-Idéia - Enfatiza a crítica e a negação à pintura moderna através da utilização que o artista faz da linguagem para produzir significados.

Ready-Made - Crítica ao gosto, ao objeto e a arte artesanal através de objetos industrializados de uso comum.

Máquinas e Mecanismos - A visão do artista do homem e da máquina pela transmutação do ser humano em “mecanismos delirantes”.

Posturas - Como Duchamp vê a arte, o artista, a atividade artística. A inatividade vista por ele mesmo e pelo autor.

Pintura-Idéia
... tudo que fez a partir de 1913 é parte de sua tentativa de substituir a “pintura-pintura” pela “pintura-idéia”. Esta negação da pintura que ele chamava olfativa (por seu odor e terebintina) e retiniana (puramente visual) foi o começo de sua verdadeira obra.

  ... por meio do título Duchamp introduz um elemento psicológico, neste caso (retrato de Dulcinéia) afetivo e irônico, na composição ... . Mais tarde afirmará que o título é um elemento essencial da pintura, como a cor e o desenho.

  ... Duchamp desde de o princípio foi um pintor de idéias e que nunca cedeu à falácia de conceber a pintura como uma arte puramente manual e visual.

  Seu fascínio diante da linguagem é a ordem intelectual: é o instrumento mais perfeito para produzir significados e, também destruí-los.

  ... confrontar palavras de som semelhante mas de sentido diferente e encontrar entre elas uma ponte verbal. É o desenvolvimento raciocinado e delirante do princípio que inspira os jogos de palavras.

O jogo de Duchamp é mais complexo porque a combinação não  é só verbal mas plástica e mental.

  ... cada quadro, cada ready-made e cada jogo de palavras está unido aos outros como as frases de um discurso. Um discurso regido por uma sintaxe racional e uma semântica delirante.

  Duchamp sabe que delira.

 

Ready-Made
Os ready-mades são objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhe-los, converte em obra de arte.  Ao mesmo tempo esse gesto dissolve a noção de obra. A contradição é essência do ato; é o equivalente plástico do jogo de palavras: este destrói; o significado, aquele a idéia  de valor.

Duchamp exalta o gesto, sem cair nunca, como tantos artistas modernos, na gesticulação.

... Não são obras mas signos de interrogação ou de negação diante das obras. O ready-made não postura um valor novo: é um dardo contra o que chamamos de valioso. É crítica ativa: pontapé contra a obra de arte sentada em seu pedestal de adjetivos.

... O ready-made é uma crítica do gosto (...) um ataque à noção de obra de arte.

Na arte o único que conta é a forma. Ou mais exatamente: as formas são as emissoras de significados. A forma projeta sentido, é um aparelho de significar.

O ready-made não é um objeto belo, nem agradável, nem repulsivo ou interessante. Em sua neutralidade reside sua não-significação.

 

Desalojado de seu contexto o ready-made perde bruscamente todo o significado e se transforma em um objeto vazio.

  O ready-made não é uma obra mas um gesto que só um artista pode realizar e não um artista qualquer, mas precisamente Marcel Duchamp.

Máquinas e Mecanismos
... A atitude diante da máquina. Duchamp não é um adepto de seu culto; ao contrário, ao inverso dos futuristas, foi um dos primeiros a denunciar o caráter ruinoso da atividade mecânica moderna.

  ... Os únicos mecanismos que apaixonam Duchamp são os que funcionam de um modo imprevisível - os antimecanismos.

  O “nu ...” é um antimecanismo. A primeira ironia consiste em que não sabemos sequer se é um Nu.

  São máquinas sem vestígios humanos e, não obstante, seu funcionamento é mais sexual do que mecânico, mais simbólico do que sexual.

  “O Rei e a Rainha”, “A passagem da Virgem à Noiva”, “A Noiva”. Nessas telas a figura humana desaparece de todo. Seu lugar não é ocupado por formas abstratas, mas por transmutações do ser humano em mecanismos delirantes ... - mecanismo e delírio, método e demência - ...

  Seu propósito não foi pintar como uma máquina mas servir-se das máquinas para pintar.

Posturas
Para Duchamp a arte é um segredo e deve compartilhar-se e transmitir-se como uma mensagem entre conspiradores:

“Hoje a pintura se vulgarizou a mais não poder ... . Enquanto que ninguém e atreve a intervir em uma conversa entre matemáticos, todos os dias escutamos dissertações de sobremesa sobre o valor deste ou daquele pintor ... . A produção de uma época é sempre a sua mediocridade. O que não se produz sempre é melhor que o produto”.

“O pintor integrou-se completamente na sociedade atual, já não é um pária ... “

Duchamp não quer acabar nem na Academia nem entre os mendigos, mas é evidente que prefere a sorte do pária à do “artista assimilado”. Sua atitude é de crítica da modernidade, assim como sua obra.

O valor de um quadro, um poema ou qualquer outra criação de arte se mede pelos signos que nos revela e pelas possibilidades de combiná-los que contém. Uma obra é uma máquina de significar.

“O espectador faz o quadro”.

“O artista nunca tem plena consciência de sua obra: Entre as suas inquietações e sua realização, entre o que quer dizer e o que a obra diz, há uma diferença. Essa diferença é realmente a obra.”

  O quadro depende do espectador porque só ele pode por em movimento o aparelho de signos que toda obra é.     Uma arte que obriga o espectador e o leitor a converter-se em um artista e em um poeta. Arte fundida à vida é arte socializada, não arte social nem socialista e ainda menos atividade dedicada à produção de belos objetos ou simplesmente decorativos.

  Duchamp pretende reconciliar arte e vida, obra e espectador.

“A arte é uma das formas mais altas de existência, com condição de que o criador escape a uma dupla armadilha: a ilusão da obra de arte e a tentação da máscara de artista. Ambas nos petrificam: a primeira faz de uma paixão uma prisão e a segunda de uma liberdade uma profissão”.

“Creio que a arte é a única forma de atividade pela qual o homem se manifesta como indivíduo. Só ela pode superar o estado animal, porque a arte desemboca em regiões que nem o tempo nem o espaço dominam.”

O fim da atividade artística não é a obra, mas a liberdade. A obra é o caminho e nada mais. Esta liberdade é ambígua ou, melhor dizendo, condicional: A cada instante podemos perdê-la, sobretudo se tomarmos a sério nossa pessoa e nossas obras. Talvez para sublinhar o caráter provisório de toda liberdade, não terminou o “Grande Vidro”; assim como não se tornou seu escravo. Duchamp dizia que não fazia nada senão respirar e ao respirar trabalhava, melhor dizendo, suas obsessões e seus mitos o trabalhavam. A inação é a condição da atividade interior.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As hipóteses de Costa - O Sublime Tecnológico

Premissas de Mario Costa – Trecho extraído do livro: O Sublime Tecnológico

 

É minha opinião, o advento de tecnologias como o daguerreótipo (1839), o telefone (1877), o fonógrafo (1878) abriu uma nova época do estético, que está amadurecendo no tempo em que estamos vivendo. A produção e a conservação tecnológicas das imagens e dos sons e a comunicação à distância provocam nos domínios da arte algumas transformações profundas e um movimento de aceleração que dela consuma e exaure todos os possíveis modos de ser.
Mas as tecnologias indicadas não apenas provocaram e deram início a um processo de corrosão da essência da arte, liquidando teoricamente o seu direito à existência: elas a um só tempo determinaram e encaminharam um movimento de superação que, da arte, conduz à produção e à fruição socializadas do sublime, naquelas formas tornadas possíveis pelas atuais tecnologias, as quais pensei em poder indicar como sublime tecnológico.
As neotecnologias comunicacionais (circuitos televisivos, in live, redes telemáticas, slow-scan TV e telefax, tecnologias de satélite...) e as tecnologias de síntese (das imagens, dos sons, das formas plásticas...) são as mídias desta dimensão do sublime tecnológico as quais se oferecem e as quais nos são dadas a percorrer. A estética das tecnologias comunicacionais e a fenomenologia do sublime tecnológico que são a ele conectadas foram por mim individuadas e estudadas desde 1983, ano de formulação de um primeiro documento do que, por brevidade, foi denominado de "estética da comunicação" enquanto o reconhecimento da sublimidade da imagem eletrônica remonta ao ano anterior. As neotecnologias comunicacionais e as tecnologias de síntese talvez sejam a nova "morada do ser" e talvez apenas delas possa ter origem àquela diversa e nova forma de "colocar em obra a verdade" que denominamos O sublime tecnológico.

Texto de Annateresa Fabris sobre o livro de Costa

 

A Estética da Comunicação e o Sublime Tecnológico

Ao criar em 1983, com o artista francês Fred Forest, o Movimento da Estética da Comunicação, Mario Costa apresentava-o não como uma poética, mas enquanto "uma reflexão filosófica sobre a nova condição antropológica e, conseqüentemente, sobre as novas formas de vivências estéticas instauradas pelas tecnologias comunicacionais, bem como sobre o destino reservado nessa nova situação, às categorias estéticas tradicionais (forma, beleza, sublime, obra gênio ...)".

As transformações antropológicas trazidas pelas novas tecnologias podem ser enfeixadas em três categorias fundamentais: re-apresentação de coisas ou acontecimentos, que guardam seu caráter de fluxo, simulação da existência de algo que não existe e que se constitui graças à mediação dos aparatos tecnológicos; realização de novas formas de comunicação, que modificam a fenomenologia do acontecimento. Longe de produzir objetos ou formas, a estética da comunicação tem um campo de atuação privilegiado na experiência de um espaço-tempo dilatado pela presença das neotecnologias, que transformam o acontecimento num presente indefinido e redefinem a própria concepção de realidade.

Não é difícil perceber por essas características os elos que unem as concepções da estética da comunicação com algumas experiências das vanguardas históricas e da neovanguarda. O próprio Costa realiza um mapeamento nesse sentido, apontando um parentesco com o futurismo, dadaísmo e Fluxus pela exploração do acontecimento; com a arte conceitual pelo fenômeno da desmaterialização; com a energia pura de Klein e o espacialismo de Fontana; com a poética da obra aberta pela interatividade a ela inerente; com a superação do circuito artístico tradicional proposto por manifestações como happenings, environments, etc.

Se a estética da comunicação tem início em 1844 com a disputa de uma partida de xadrez via telégrafo, é inegável, no entanto, que o interesse de artistas e intelectuais pelas novas tecnologias se acentua a partir dos anos 30 de nosso século, quando o debate sobre o uso didático e artístico do rádio ganha densidade com intervenções como aquelas de Brecht e de Marinetti e Masnata.

Interessado na gestão proletária do rádio, que deveria participar de uma nova política cultural, Brecht é atento observador das transformações por ele trazidas em termos de difusão/recepção, quer por implicar um tempo real, quer por visar um resultado coletivo, até mesma interativo:

“(...) O rádio poderia ser para a vida pública o meio de comunicação mais grandioso que se possa imaginar, um extraordinário sistema de canais, isto é, poderia sê-lo se tivesse condições não só de transmitir, mas também de receber, não só de fazer escutar algo ao ouvinte, também de fazê-lo falar, não de isolá-lo, mas de colocá-lo em relação com outros.(...)”

Marinetti e Masnata, por sua vez, no manifesto La radio, de outubro de 1933, demonstram uma consciência aguda das possibilidades expressivas do novo meio, que permitiria pôr fim à noção unívoca de espaço e tempo, proporcionaria uma percepção descentralizada e múltipla, criaria sensações materiais e atemporais. É por isso que afirmam que o rádio é "uma arte sem tempo nem espaço, sem ontem e sem amanhã. A possibilidade de captar estações transmissores colocadas em diferentes fusos horários e a falta de luz destroem as horas, o dia e a noite. A captação e a ampliação com válvulas termo-jônicas da luz e das vozes do passado destruirão o tempo.

Quando aa televisão, as primeiras preocupações com seu uso criativo remontam a Fontana, que, desde 1946, busca novas possibilidades para a imagem, desvinculadas do sistema tradicional das artes e enformadas pelas novas tecnologias, capazes de replasmar a matéria e a espaço. As diversas intuições de Fontana, que chega a elaborar um projeto a ser transmitido de um aeróstato, condensam-se no Manifesto do Movimento Espacial para a Televisão (1952): "É verdade que a arte é eterna, mas esteve sempre ligada à matéria, enquanto nós queremos que se desvincule dela e que, através do espaço, possa durar um milênio, mesmo na transmissão de um minuto".

Os vários exemplos indicados, com exceção de Brecht, fazem parte da cronologia elaborada por Costa, que propõe pensar as novas tecnologias não como próteses do corpo humano, a maneira de McLuhan, e sim como funções separadas, como instrumentos dotados de uma lógica própria com a qual é necessário interagir para poder utilizá-los.

Ao propor um percurso, que passa pela técnica, pela tecnologia e pela neotecnologia, Mario Costa enfatiza um fenômeno que será um dos eixos centrais de o sublime tecnológico: o decréscimo progressivo da idéia de subjetividade, fogo de autoria, e o paralelo predomínio da lógica dos instrumentos utilizados, não raro co-autores do evento.

Derrida e Nietzsche estão na base das reflexões do autor sobre a dissolução do sujeito individual e sobre o surgimento do sujeito ultra-individual, exemplificados em o sublime tecnológico através da fotografia e das imagens sintéticas. Se, na fotografia, é difícil não pensar nas técnicas e, portanto, no enfraquecimento da noção de autor, a imagem sintética impõe-se de imediato como ”um real em si e por si” como produto de um trabalho puramente intelectual, que nada tem a ver com o sujeito, que faz do artista um experimentador estético, alguém que operacionaliza e materializa paradigmas conceituais.

A redefinição do sujeito é apenas um aspecto da estética da comunicação, à qual  Costa atribui um conjunto de funções, cujo objetivo é preparar o terreno para a "antropologia do futuro". Os "artistas da comunicação" (Forest, Karczmar, Mitropoulos, Ascott, Denjean, Philippe, Anglade, entre outros) exibem um convívio otimista com a tecnologia partilham o sentimento de uma nova unidade da estética humana; pautam-se por um novo sentimento do espaço e do tempo, que dilata o presente e cria uma sensação de perda de lugar, busca um novo objeto cultural, integrado simultaneamente por ciência e arte; trabalham em prol do fim das identidades culturais e da constituição de uma cultura das hibridações, na qual a tecnologia e o arcaísmo possam vir a se encontrar e a se contaminar reciprocamente.

Ao se expandir no espaço-tempo, o acontecimento da estética da comunicação ativa um circuito, no qual o que importa não é tanto o que é transmitido quanto a rede e as condições funcionais do intercâmbio. Um intercâmbio no qual são ativadas concomitantemente uma energia vital e uma energia artificial no qual o que é determinante é a presença; no qual o caráter ameaçador da tecnologia se converte em sublime tecnológico, na possibilidade de uma socialização da produção e da fruição da sublimidade.

Para definir o sublime tecnológico, Mario Casta lança mão da Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant, na qual encontra as categorias que lhe permitem articular sua análise do impacto provocado pelas imagens sintéticas e, posteriormente, pela estética da comunicação. A relação do homem com o sublime se dá em duas fases segundo Kant: o colapso da sensibilidade diante da magnitude da natureza, impossível de ser abarcada numa só visada e incomensurável quando comparada com as dimensões do corpo humano; o ensimesmamento da imaginação que, após o primeiro recuo provocado pela imensidão da natureza, resgata a capacidade intelectual do homem, muito maior que qualquer poder exterior. Kant distingue dois tipos de sublime: o matemático constituído pela experiência do objeto que não cabe nos parâmetros antropomórficos; o dinâmico, gerado pelo espetáculo de uma força que não cabe igualmente dentro dos padrões de medida convencionais.

Num caso e no outro, não pode haver medo, pois este introduz um interesse físico, inadequado à experiência estética postulada pelo filósofo alemão. Esse aspecto é fundamental na tarefa pedagógica que Costa atribui às novas tecnologias, pois elas se mostram capazes de domesticar a causa do espanto, transformando-a em objeto "de uma produção controlada e de um" consumo socializado e repetível".

A essência da tecnologia, revelada pela epifania das imagens sintéticas e da estética da comunicação, se, de um lado, mortifica a imaginação com a negação das categorias artísticas tradicionais, centradas no sujeito, exalta, de outro, as capacidades da razão, que se desdobram na afirmação do dispositivo tecnológico. É desse duplo movimento de mortificação-exaltação que brota finalmente o sublime tecnológico, que Costa faz consistir na capacidade de superar a obra de arte em prol de “uma sublime objetividade tecnológica que tenha no hiper-sujeito sua origem e sua destinação”.

O que o autor propõe, portanto, não é a artistificação da tecnologia nem o uso dos novos aparatos para expressar uma subjetividade que não existe mais, o que é fundamental em sua análise é detectar os momentos em que a irrupção das novas tecnologias modificou a cultura e os modos de existência da sociedade ocidental e, conseqüentemente, os dispositivos imaginários. Se algumas das conclusões de Costa podem parecer assustadoras aos defensores de uma visão humanista, talvez seja necessário lembrar que, pelo menos há dois séculos, desde o advento da Revolução Industrial, não é mais possível pensar a arte em termos tradicionais, pois tanto as afirmações quanto às negações do horizonte tecnológico são o sinal inequívoco do reconhecimento de seu caráter fundador de uma nova antropologia. Antropologia novamente em elaboração nestes dias que não podemos deixar de chamar de pós-modernos, inteiramente moldados pela noção de simulacro, à qual Costa atribuiu uma série de tarefas utópicas, na tentativa de afastar qualquer suspeita de alienação e de dar por superado um momento da arte que parece não ter mais nenhuma razão de ser.


 
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